CfP: Relações de gênero, capitalismo e sexualidade na teoria crítica da sociedade

2023-09-04

CfP: Relações de gênero, capitalismo e sexualidade na teoria crítica da sociedade

Embora as análises da sexualidade, da família e das relações de gênero tenham sido um elemento importante nos primeiros esforços para desenvolver uma teoria crítica da sociedade burguesa, elas receberam pouca atenção. Em geral, prevaleceu a impressão de que os teóricos críticos não falavam muito sobre gênero ou, quando o faziam, era de uma forma tradicional e não crítica. Ao mesmo tempo, nos últimos anos, a teoria feminista demonstrou um interesse crescente na crítica do capitalismo, que, no entanto, quase não levou em conta as contribuições da Teoria Crítica. Essa situação nos convida a reler as contribuições da Teoria Crítica à luz das propostas teóricas mais recentes sobre as relações de gênero e a configuração social da sexualidade, com a intenção de recuperar elementos que podem ter sido negligenciados e que poderiam enriquecer os debates atuais

Certamente, o corpus da teoria crítica demonstra certa cegueira em relação às questões de gênero, pois reproduz estereótipos masculinos e ignora as experiências de vida das mulheres. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que, desde os Estudos sobre Autoridade e Família até as análises do autoritarismo, a teoria crítica fez da família burguesa um objeto crucial de análise para desvendar as relações de autoridade no século XX. O programa de atualização de uma teoria crítica da sociedade na esteira de Marx concentrou-se nas mudanças na forma e na função da família na transição da fase liberal para a fase capitalista tardia da sociedade burguesa. Embora seja verdade que não houve um confronto sistemático com as relações de gênero, não se pode negar que a ordem de gênero foi tematizada como um elemento constitutivo da sociedade burguesa e do modo capitalista de socialização. Da perspectiva da teoria crítica, não basta focar nas relações de gênero isoladamente, mas é necessário vê-las em seu entrelaçamento com as relações de poder, as formas de dominação social e a desigualdade estrutural que definem a socialização capitalista e mediam os processos de subjetivação.

A Dialética do Iluminismo também dá um lugar central à ligação entre a racionalidade instrumental, a dominação da natureza e a repressão da sexualidade, da sensualidade e do prazer, por um lado, e a dominação patriarcal, por outro. Entretanto, ao se concentrar na dialética da racionalidade que molda a masculinidade e o patriarcado, ou nos efeitos do modo de produção capitalista sobre os processos de subjetivação, ele não abordou diretamente a experiência das mulheres, obscurecendo, assim, a compreensão da dominação patriarcal. No entanto, suas análises da dominação masculina e os instrumentos que mobilizaram para sua crítica têm relevância indubitável para a teorização feminista. Adorno e Horkheimer apontam que a sociedade burguesa e sua ordem legal, presidida pela unidade de gênero e propriedade, têm um caráter patriarcal. O entrelaçamento das relações de dominação da natureza, classe e gênero é apresentado como uma conexão constitutiva de tal sociedade. A masculinidade e a feminilidade burguesas são o produto de processos históricos e relações sociais. O domínio patriarcal é inseparável da negação do status de sujeito das mulheres e de sua identificação com a natureza. Entretanto, o fato de a Dialética do Iluminismo identificar a sujeição das mulheres à esfera da reprodução com sua exclusão das formas dominantes de subjetivação tem sido criticado pelas feministas. Essa identificação contribui para tornar invisível o entrelaçamento do trabalho doméstico não remunerado e do trabalho remunerado mediado pelo mercado, que caracteriza grande parte da história das mulheres na sociedade burguesa e revela tanto a interconexão dessas duas formas de dominação e exploração - patriarcal e capitalista - quanto a impossibilidade de reduzir uma à outra.

Por outro lado, embora hoje H. Marcuse esteja menos presente nos debates sobre teoria crítica, liberação queer e feminismo, seu diálogo com o movimento feminista foi um dos mais relevantes na tradição da Teoria Crítica de Frankfurt. Sua crítica à sociedade patriarcal e à repressão (hetero)sexual remonta a Eros and Civilisation (1955) e, na década de 1970, abordou explicitamente a relação entre "marxismo e feminismo". Suas contribuições influenciaram os debates sobre o significado da liberação sexual, a emancipação das mulheres, bem como o potencial emancipatório de certas qualidades definidas como especificamente "femininas". Sua ideia de emancipação é inseparável da superação do contraste dualista entre o "masculino" e o "feminino". Certamente, sua compreensão das diferenças de gênero nunca foi além da estrutura da binaridade, mas sua crítica de uma civilização fundada no princípio da dominação conseguiu identificar essa dominação como especificamente patriarcal, ou seja, baseada em uma conexão estrutural entre agressividade, racionalidade instrumental, produtividade destrutiva e vontade de poder. Daí surgiu uma ideia de emancipação que encontrou nas qualidades "femininas" - por mais que fossem o resultado do processo de dominação - um potencial para a transformação da sociedade como um todo.

Em resumo, a teoria crítica considera a opressão de gênero e o poder patriarcal como um elemento constitutivo da sociedade burguesa. O entrelaçamento da dominação capitalista e da dominação patriarcal se aplica tanto à fase de transformação da ordem liberal clássica no início do século XX quanto às fases posteriores, com modulações que precisam ser analisadas em sua especificidade. Nesse sentido, uma emancipação que afeta as diferenças e as relações de gênero é inseparável de uma profunda transformação da sociedade como um todo.

Dentro dessa estrutura, convidamos contribuições que 1) abordem textos e contribuições centrais da Teoria Crítica, bem como 2) aquelas que utilizem os conceitos e análises da Teoria Crítica para a análise das relações de gênero contemporâneas. Para esse fim, propomos os seguintes núcleos temáticos:

  • A interseccionalidade constitui hoje uma abordagem indispensável para a crítica feminista, mas seu significado é articulado de forma diferente em diferentes contribuições teóricas. Quais são as conexões entre as diferentes relações de poder e dominação sob a perspectiva das abordagens interseccionais e da Teoria Crítica? Quais são seus respectivos pontos fortes e limitações? Quais são os possíveis pontos de convergência, pontos de atrito ou elementos complementares que podem ser identificados entre as abordagens interseccionais e a Teoria Crítica?
  • Um conceito central no qual as preocupações do movimento feminista e da teoria feminista convergem com as análises da Teoria Crítica é o de emancipação. Que concepção de emancipação nas relações sexuais e de gênero pode ser encontrada na Teoria Crítica? Como ela pode ser avaliada na estrutura de teorizações e debates feministas mais recentes?
  • A teoria social crítica se distingue por analisar o entrelaçamento da economia, da cultura e da subjetividade. Essa perspectiva pode ser produtiva para a análise das relações de gênero. Por exemplo, um conceito fundamental nesse sentido é o de "dupla socialização", que visa a uma revisão da concepção androcêntrica do trabalho que invisibiliza tanto a esfera do cuidado quanto as formas feminizadas de trabalho assalariado. Ao mesmo tempo, esse conceito concentra a atenção nos efeitos sobre os processos de subjetivação, incorporando também contribuições da psicanálise. Isso oferece perspectivas de grande interesse para a teoria feminista contemporânea, que vão além do escopo dos feminismos marxistas ou materialistas que se concentram principalmente na divisão do trabalho e nas teorias de (re)produção.
  • As questões relativas aos conceitos de identidade, diferença e subjetividade e sua crítica têm estado no centro de grande parte do debate entre a teoria crítica e o pós-estruturalismo. Nesse sentido, a crítica do processo de subjetivação e identidade parece constituir um ponto de encontro entre as duas posições teóricas, que são igualmente confrontadas com uma concepção essencialista do sujeito e com a identificação de sexo e gênero. O impulso para desnaturalizar o poder é reconhecível em ambas as posições. Mas as concepções de poder e sua crítica, bem como o papel que a subjetividade pode desempenhar em uma crítica da dominação, permanecem diferentes. Os debates em torno da política de identidade constituem um campo atual de esclarecimento da relação entre a teoria crítica e certos entendimentos do feminismo.
  • A relação entre a teoria crítica, a psicanálise e o feminismo é uma relação cheia de tensões. Para a maioria dos teóricos críticos, a psicanálise ocupa um lugar de destaque. Sua importância para desvendar a dinâmica autodestrutiva da modernidade, bem como o surgimento de tendências autoritárias, é bem conhecida. A dominação da natureza e a dominação social só conseguem se impor em seu entrelaçamento com a repressão do impulso necessário para a subjugação da natureza interior. De uma perspectiva feminista, entretanto, não foi possível estabelecer uma ligação perfeita com Freud e a recepção da psicanálise na Teoria Crítica. Em vez disso, o feminismo problematizou o complexo de Édipo e os vieses androcêntricos de sua análise dos processos de subjetivação. Mas, dentro da teoria feminista, também houve um intenso debate sobre até que ponto era necessário se afastar da teoria freudiana das pulsões e se aproximar do paradigma da intersubjetividade. Nesse sentido, pode-se perguntar quais são os respectivos pontos fortes e limitações de cada uma dessas abordagens de gênero. De qualquer forma, as relações entre a teoria crítica e a psicanálise e entre o feminismo e a psicanálise constituem uma constelação produtiva para iluminar questões relativas à identidade social do gênero e sua relação com a materialidade do corpo e com o desejo; com a subjetivação, os mecanismos de coerção social e a mercantilização das identidades sexuais e culturais; com a rejeição patética da ambivalência e o rompimento interno entre as atribuições de identidade sexual e o fundo da pulsão. Por exemplo, como a relação entre a dimensão social e corporal do gênero pode ser compreendida a partir de uma perspectiva da teoria crítica mediada pela psicanálise?
  • Atualmente, estamos testemunhando um aumento nas tendências autoritárias, que mobilizam afetos antifeministas com base em noções heteronormativas de família, gênero e sexualidade. Estudos sobre a interconexão de nacionalismo, racismo, antissemitismo, homofobia, transfobia e antifeminismo assumem uma urgência especial nesse contexto. Até agora, predominaram as abordagens baseadas na análise do discurso e nas interseções entre diferentes grupos de atores. Mas aqui, também, o potencial específico da teoria crítica deve ser sondado, o que pode permitir que o sintagma dos "limites do Iluminismo" seja aplicado à análise do sexismo: como seus insights sobre a mediação social dos processos psicodinâmicos podem se tornar produtivos para o estudo das manifestações contemporâneas de autoritarismo? Até que ponto é possível e/ou necessário desenvolver as abordagens analíticas da teoria crítica para entender os fenômenos atuais?

As propostas de contribuições originais em espanhol, inglês, catalão, galego ou português podem ser enviadas até 15º de maio de 2024.